Ciclo Menstrual e Endurance: Como Ajustar Sua Estratégia no Trail Running Feminino

O universo do trail running exige muito do corpo — resistência prolongada, adaptação a terrenos variados, controle emocional e resiliência mental. Para as mulheres, há um fator adicional que precisa ser considerado com atenção: o ciclo menstrual. Diferente de uma abordagem neutra ou padronizada, entender a fisiologia feminina é essencial para alcançar a melhor performance possível, sem ignorar os sinais do corpo.

O ciclo menstrual não é apenas uma questão de desconforto ou sintomas pontuais. Ele envolve oscilações hormonais que afetam diretamente a energia, a temperatura corporal, a capacidade de recuperação muscular, o equilíbrio emocional e até o risco de lesões. Cada fase — da menstruação à ovulação, da fase lútea à folicular — traz consigo características únicas que podem interferir positiva ou negativamente no desempenho, dependendo de como são encaradas.

Apesar disso, a maioria dos planos de treino, tanto para iniciantes quanto para atletas experientes, ainda ignora essas variações hormonais. Muitas mulheres acabam se frustrando por não entenderem por que um treino que fluiu bem em um dia parece impossível em outro — quando, na verdade, o que mudou foi o momento do ciclo. Trazer essa consciência para o planejamento esportivo é um passo importante rumo a um esporte mais inclusivo, saudável e eficiente.

Neste artigo, vamos entender como o ciclo menstrual impacta os esportes de endurance, com foco no trail running feminino. Vamos destrinchar as fases do ciclo, identificar como cada uma pode influenciar o rendimento nas trilhas e oferecer sugestões práticas para ajustar seu treinamento e suas estratégias de prova. A proposta é simples: usar o conhecimento do seu corpo como uma aliada, e não como um obstáculo.

Entendendo o Ciclo Menstrual

Para quem pratica esportes de endurance, como o trail running, compreender o funcionamento do próprio corpo é essencial. No caso das mulheres, isso passa diretamente pelo entendimento do ciclo menstrual, que não se resume apenas ao período da menstruação em si. O ciclo é composto por quatro fases principais — menstrual, folicular, ovulatória e lútea — e cada uma delas é marcada por alterações hormonais que afetam o desempenho físico e mental.

Fase Menstrual (dias 1 a 5, aproximadamente)

É o momento em que ocorre o sangramento menstrual. Os níveis dos hormônios estrogênio e progesterona estão baixos, o que pode resultar em sensação de cansaço, menor tolerância ao esforço, dores corporais e alterações de humor. Algumas mulheres se sentem indispostas ou mais sensíveis emocionalmente, enquanto outras conseguem treinar normalmente, dependendo da intensidade do fluxo e dos sintomas.

Fase Folicular (do fim da menstruação até a ovulação)

Durante essa fase, o corpo começa a produzir mais estrogênio, o que gera um aumento gradual da energia, melhora da disposição e maior tolerância ao exercício. É um período especialmente favorável para treinos mais intensos e progressivos, já que o corpo tende a responder bem a estímulos de força e resistência. A recuperação também costuma ser mais eficiente.

Fase Ovulatória (em torno do 14º dia, em ciclos de 28 dias)

É o ponto alto do estrogênio e o momento em que o óvulo é liberado. Muitas mulheres relatam aumento da força, da confiança e até da competitividade nessa fase. No entanto, é também um período em que os ligamentos ficam mais suscetíveis a lesões, especialmente nos joelhos e tornozelos — algo importante de se considerar em terrenos irregulares. A temperatura corporal começa a subir ligeiramente.

Fase Lútea (do pós-ovulação até o início da menstruação)

A progesterona assume o protagonismo e pode causar efeitos como retenção de líquidos, aumento da temperatura basal, fadiga e maior esforço percebido durante os treinos. Algumas mulheres também sentem maior irritabilidade, dores nas mamas, inchaço e queda de rendimento. Nessa fase, o foco pode estar em treinos mais leves, estratégias de recuperação ativa e escuta atenta do corpo.


Essas oscilações hormonais não devem ser vistas como limitações, mas como variações naturais que merecem atenção. Saber em qual fase você está permite ajustar a intensidade, o volume e o tipo de treino para otimizar a performance sem entrar em conflito com o próprio corpo. Em vez de lutar contra essas mudanças, o segredo está em usá-las a seu favor.

Impactos do Ciclo Menstrual no Endurance

No trail running, o corpo é exigido ao máximo — longas subidas, terrenos instáveis, mudanças bruscas de intensidade e a necessidade constante de resistência física e mental. Ao entender como cada fase do ciclo menstrual interfere na resposta do corpo a esses estímulos, é possível alinhar os treinos e as expectativas para alcançar uma performance mais consistente e respeitosa com o próprio ritmo.

Fase Menstrual: energia reduzida e desconforto

Durante a menstruação, muitas mulheres sentem uma queda perceptível na energia e aumento na percepção de esforço. Isso pode tornar mais desafiadores os treinos longos ou com muita elevação, como subidas de montanha. Cãibras, dores lombares, fadiga e queda de ferro (especialmente em mulheres com fluxo intenso) também influenciam o desempenho. Nessa fase, pode ser mais eficiente optar por treinos leves, caminhadas técnicas, yoga ou descanso ativo, priorizando a recuperação.

📚 Estudo publicado no British Journal of Sports Medicine (2019) indica que a força, o VO₂ máximo e a resistência aeróbica tendem a estar mais baixos no início do ciclo menstrual, o que pode impactar atividades de endurance.

Fase Folicular: aumento de energia e ótima resposta a treinos

Com o aumento do estrogênio, o corpo entra em uma fase altamente favorável para treinos mais longos, treinos em subida e séries de velocidade. A resposta ao esforço tende a ser melhor, com recuperação mais rápida, maior resistência muscular e disposição geral elevada. É uma ótima fase para “desafios” físicos e estratégicos na trilha.

🧬 Pesquisas mostram que os níveis elevados de estrogênio melhoram a utilização de carboidratos e gorduras como fonte de energia, favorecendo esportes de resistência.
(McNulty et al., 2020; Exercise and Sport Sciences Reviews)

Fase Ovulatória: pico de força, atenção ao risco de lesões

Essa fase, embora breve, é marcada por alto rendimento físico — muitas corredoras se sentem fortes, confiantes e mentalmente engajadas. Treinos de alta intensidade, provas curtas e com subidas técnicas podem render bem aqui. No entanto, há uma ressalva importante: os altos níveis de estrogênio aumentam a frouxidão ligamentar, o que pode elevar o risco de lesões, principalmente nos joelhos e tornozelos.

⚠️ Estudos como o de Herzberg et al. (2017) apontam que o risco de entorses e lesões no LCA (ligamento cruzado anterior) é significativamente maior durante a ovulação, especialmente em esportes que exigem mudanças rápidas de direção e impacto.

Fase Lútea: resistência mental x esforço percebido

Durante essa fase, os níveis de progesterona estão elevados, o que pode aumentar a temperatura corporal em até 0,5ºC, impactar a hidratação e elevar a frequência cardíaca em repouso. A percepção de esforço também aumenta, fazendo com que corridas que antes pareciam “leves” se tornem mais cansativas. Apesar disso, muitas atletas relatam bom rendimento quando conseguem manter o foco e adaptar o volume. Evite sobrecarga; foque em consistência e boa nutrição.

💡 Um estudo publicado no Journal of Sports Sciences (2016) sugere que o tempo até a exaustão é menor durante a fase lútea, indicando maior necessidade de atenção à recuperação e ao controle do volume de treino.

Ao reconhecer esses padrões, cada atleta pode personalizar sua jornada nos treinos e provas, tirando o máximo proveito de cada fase e evitando frustrações desnecessárias. Trail running é, acima de tudo, escuta ativa do corpo — e o ciclo menstrual é uma das linguagens mais potentes desse corpo em movimento.

Ajustando o Treinamento Conforme o Ciclo

Saber em que fase do ciclo menstrual você está é um dos primeiros passos para construir um plano de treino mais inteligente, eficiente e sustentável. Ajustar o volume, a intensidade e o foco dos treinos conforme as mudanças hormonais permite que o corpo trabalhe a favor da performance — e não contra ela. A seguir, você confere orientações práticas para adaptar seus treinos de trail running ao longo do mês.

🩸 Fase Menstrual (dias 1 a 5) — Foque no descanso ativo e na escuta do corpo

Priorize atividades leves: caminhadas em trilha, treinos regenerativos ou de técnica.

Evite treinos longos e provas intensas, principalmente nos primeiros dias de sangramento.

Caso os sintomas forem leves, mantenha o treino, mas reduza o volume e a expectativa de performance.

Alimente-se bem e hidrate-se com atenção para compensar perdas de ferro e líquidos.

🌱 Fase Folicular (do fim da menstruação até a ovulação) — Treine forte e com progressão

Ideal para treinos longos em subida, rodagem em ritmo moderado e treinos de força.

Aposte em séries de velocidade, treinos de tempo run e percursos técnicos.

A resposta ao treino e a capacidade de recuperação são mais altas — aproveite para fazer progressos.

Excelente momento para testar novos estímulos e aumentar o desafio mental.

🔥 Fase Ovulatória (em torno do 14º dia) — Energia alta com atenção à prevenção

Invista em treinos curtos de alta intensidade ou provas curtas.

Mantenha atenção ao aquecimento, propriocepção e estabilidade articular, principalmente dos joelhos.

Use o pico de energia e motivação a seu favor, mas evite abusos técnicos em terrenos de risco.

Trabalhos de mobilidade e força funcional ajudam a manter a segurança muscular e articular.

🌕 Fase Lútea (pós-ovulação até a menstruação) — Regule a intensidade e cuide da recuperação

Treinos moderados com foco em resistência contínua são mais indicados do que esforços máximos.

Dê preferência a percursos mais constantes e evite picos de intensidade se o corpo pedir descanso.

Aumente o foco em recuperação: sono de qualidade, alimentação anti-inflamatória e hidratação adequada.

Se houver sintomas de TPM, adapte os treinos sem culpa: flexibilidade é uma aliada.

E se o ciclo for irregular?

Nem todas as mulheres têm ciclos previsíveis. Para quem usa anticoncepcionais ou possui variações hormonais naturais, o ideal é focar em sinais corporais: percepção de esforço, motivação, energia ao acordar, qualidade do sono, entre outros. Usar um diário de treinos ou aplicativos de rastreamento hormonal pode ajudar a construir padrões e entender como o corpo responde ao longo do mês, mesmo fora de ciclos típicos.

Planejar seus treinos com base no ciclo menstrual não significa rigidez — significa liberdade. É respeitar o que seu corpo pede em cada fase e usar esse conhecimento como ferramenta estratégica. No trail, onde o autoconhecimento é tão importante quanto a resistência, esse é um diferencial poderoso.

Estratégias para Dias de Prova

Cair o dia da prova em uma fase “difícil” do ciclo menstrual pode parecer frustrante, mas não precisa ser motivo de preocupação ou desistência. Com planejamento, autoconhecimento e alguns ajustes, é possível manter o desempenho e o bem-estar mesmo quando os hormônios parecem não colaborar. Veja abaixo estratégias práticas para enfrentar os desafios mais comuns:

🩸 Se a prova cair durante a menstruação

Escolha roupas adequadas: prefira shorts ou leggings escuras e absorventes internos confiáveis (absorvente interno, coletor menstrual ou calcinha absorvente). Teste-os antes em treinos.

Leve itens extras: papel higiênico, saquinhos impermeáveis, produtos de higiene e um absorvente reserva no cinto ou mochila.

Hidrate-se mais: o sangramento pode aumentar o risco de desidratação. Aumente a ingestão de água e eletrólitos.

Alimente-se bem no dia anterior: para evitar fadiga e reforçar os estoques de ferro e energia.

Se possível, reduza o ritmo no início: respeite a sensação de esforço do corpo e evite exageros nos primeiros quilômetros.

🌱 Se a prova acontecer na fase folicular ou ovulatória

Aproveite o pico de energia: essas fases costumam favorecer desempenho, motivação e força. É um ótimo momento para dar o seu melhor.

Mantenha a atenção em terrenos técnicos: principalmente na ovulação, quando o risco de lesões ligamentares pode ser maior.

Invista na estratégia mental: sua clareza, foco e capacidade de enfrentar desafios estarão mais aguçados — use isso a seu favor.

🌕 Se a prova ocorrer na fase lútea

Controle o ritmo e escute o corpo: a percepção de esforço tende a ser maior, então planeje uma largada mais conservadora.

Hidrate-se com atenção: a progesterona aumenta a temperatura corporal e pode alterar o equilíbrio de líquidos. Reponha com água e eletrólitos durante toda a prova.

Planeje pausas estratégicas: caso sinta fadiga mental ou desconforto, organize pequenos “checkpoints” mentais ao longo do percurso para manter o foco.

Evite experimentar novidades: seu corpo pode estar mais sensível, então mantenha uma rotina alimentar e de suplementação já testada.

Autocuidado é parte da estratégia

Saber como o ciclo menstrual pode afetar o seu corpo em dia de prova é parte da preparação. Isso inclui dormir bem nos dias anteriores, controlar o estresse pré-competição, evitar comparações com outros momentos do ciclo e lembrar que rendimento é uma soma de fatores — e não uma linha reta.

Seja qual for a fase em que você esteja, o principal é se preparar com antecedência, ajustar as expectativas com base na realidade do seu corpo e lembrar que performance também é sobre presença, constância e respeito por si mesma.

Escutando o Corpo e Usando Tecnologia a Favor

Nenhum plano de treino — por mais detalhado que seja — substitui a capacidade de escutar o próprio corpo. No trail Running, onde as variáveis externas já são muitas (clima, terreno, altimetria, etc.), entender os sinais internos torna-se ainda mais crucial. O ciclo menstrual não é algo a ser “superado”, mas sim observado, compreendido e integrado à rotina com inteligência e respeito.

🎧 Escuta corporal: mais do que sintomas

Aprender a identificar padrões de energia, variações de humor, sensação de leveza ou peso nas pernas, sono e até mudanças sutis na motivação é um exercício contínuo. Ao longo de alguns ciclos, você pode começar a perceber que há dias em que sua corrida flui com naturalidade — e outros em que forçar resulta em desgaste desnecessário. A escuta ativa permite essa adaptação, prevenindo lesões e promovendo bem-estar a longo prazo.

Dica prática: após cada treino, anote em poucas palavras como se sentiu fisicamente, emocionalmente e o que observou de diferente no corpo. Com o tempo, esse diário se transforma em um mapa valioso da sua performance cíclica.

📱 Aplicativos e tecnologia como aliadas

Hoje, diversas ferramentas digitais ajudam a rastrear o ciclo menstrual, cruzar informações hormonais com treinos e até sugerir ajustes com base em dados fisiológicos. Aplicativos como Clue, FitrWoman, Wild.AI e Flo oferecem funcionalidades específicas para atletas, como alertas de variação de performance, risco de lesão e sugestões de alimentação por fase do ciclo.

Além disso, relógios esportivos de marcas como Garmin e Coros já incorporam o rastreamento menstrual em suas funções, permitindo cruzar dados como frequência cardíaca, sono e variação de temperatura corporal com as fases do ciclo.

Importante: esses aplicativos são ferramentas de apoio, mas não substituem o autoconhecimento. Use-os como guias, não como regras absolutas.

🌿 Intuição, ciência e performance

Ao unir a tecnologia com a escuta corporal e o conhecimento científico, a atleta se torna mais autônoma em suas decisões. Você passa a perceber padrões, ajustar metas com mais empatia e entender que “treinar bem” não significa fazer sempre mais, mas sim fazer o que é certo para o momento que você vive — hormonalmente e emocionalmente.

O corpo fala — todos os dias. Saber ouvir esse diálogo interno, registrá-lo e confiar nele é o que diferencia uma rotina automatizada de um caminho de evolução consciente no trail running.

Conclusão: Performance com Consciência Cíclica

O ciclo menstrual, por muito tempo ignorado nos planejamentos esportivos, é na verdade uma ferramenta poderosa de autoconhecimento e estratégia. Para mulheres que praticam trail running — um esporte que exige não apenas resistência física, mas também adaptabilidade, foco e equilíbrio emocional — entender como cada fase do ciclo afeta o corpo pode transformar completamente a experiência nos treinos e nas provas.

Mais do que um desafio a ser “vencido”, o ciclo é um ritmo interno que, quando respeitado, fortalece a conexão com o corpo e melhora a performance a longo prazo. Treinar e competir alinhada a esse ritmo é uma forma de escutar-se com atenção, adaptar-se com inteligência e correr com mais leveza, mesmo nos terrenos mais duros.

Compreender o ciclo, adaptar a carga de treino, cuidar da nutrição, usar a tecnologia a seu favor e — acima de tudo — confiar nos sinais do próprio corpo, é uma forma de fazer as pazes com as variações naturais da fisiologia feminina. No fim das contas, não se trata apenas de correr mais rápido ou mais longe, mas de correr com mais verdade.

Trail Running é sobre movimento, presença e conexão — e isso começa dentro de você.

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